Coisas de Rir para não Chorar

- 9.2.17

À minha avó Maria, que hoje faria anos (e em quem me reconheço em tantos dos meus, nossos, sorrisos).

Rir para não chorar
(texto publicado na última edição da Revista Mais Alentejo)

"Sempre gostei de compreender o porquê dos olhos húmidos ou das mãos suadas daqueles com quem me cruzo. Dos olhos que se baixam ou levantam ao céu. Das pernas que abanam. Dos pés que batem compassadamente no chão. Gosto de ouvir, mas não gosto menos de observar e sentir o outro, na certeza de que ninguém é só o que aparenta, tão pouco o que faz ou o que diz.
A minha avó, mulher do campo, dessa aldeia que José Luís Peixoto tem posto nas bocas do mundo – Galveias – tinha a particularidade de fugir com os seus olhos dos nossos. (Não era fraqueza. É que os olhos dos outros, no tanto que dizem, distraem-nos do que queremos dizer. Quem nunca se perdeu nos olhos de alguém?) E sorria. Sempre. Com um riso a acompanhar a boca rasgada, qual banda sonora das maiores revelações. O homem que se enforcara numa árvore. A vizinha roubada. Os filhos da terra que nunca voltaram da guerra. Ou as vizinhas que iam morrendo, rua afora, deixando-a sozinha na última casa. “Porque é que a avó se ri quando diz estas coisas?”, perguntavam-se os netos, intrigados. A banda sonora parecia não acompanhar a mensagem. E nenhum de nós entendia, porque nenhum de nós conseguia compreender o que era ter vivido, crescido, trabalhado, casado, tido filhos, existido e resistido, num lugar e num tempo como o dela.
Um dia, resolvi sentar-me, de gravador em punho, a ouvir a sua história. O trabalho no campo explicava a curva das suas costas e as noites a costurar as artroses nos dedos. Os cinco filhos mediam-se no peito farto. Mas o riso, esse, aparecia quando recordava as vezes que teve de deixar o filho mais novo num caixote, para poder ir trabalhar. Quando ficou sem leite, na última gravidez tardia, e teve de alimentar a bebé a açorda. Quando três dos filhos foram combater em África. Quando os mais novos emigraram. Quando o marido adoeceu e a deixou sozinha.
“Mas porque é que ela se ri quando diz estas coisas?” Porque muitas das agruras da vida não podem ser evitadas. Resta-nos optar pela forma como a elas reagimos. Chorando. Mas, se possível e quando possível, rindo.

Vivemos tempos de incertezas. Trump sobe ao poder e não faço ideia de como estará o mundo quando esta crónica for publicada. Nova Guerra Fria, Terceira Guerra Mundial, Atentados terroristas, Muros levantados, Crise dos refugiados, Armas, Genocídios, Pandemias, Alterações climáticas irreversíveis, Esgotamento da Terra. As palavras invadem o nosso dia-a-dia e a verdade é que nenhum de nós, cidadãos comuns, tem neste momento como garantida a sua segurança, a paz do seu território, a sustentabilidade do seu planeta.
Pergunto-me muitas vezes que mundo é este que estou a deixar aos meus filhos. Um mundo de pernas para o ar onde nada daquilo que entendemos ser absurdo, parece ser evitável. Mas existe sempre um reduto: a nossa atitude. Como rezava São Francisco de Assis – aquele que terá inspirado o Papa Francisco na escolha do seu nome, exatamente pela sua atitude - “Senhor, dai-me força para mudar o que tem de ser mudado. Resignação para aceitar o que não pode ser mudado. E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”
Creio que a minha avó, na sua humilde forma de ser e viver, tinha essa sabedoria. Nas adversidades, arregaçava as mangas. Em relação a tudo o resto, mesmo que lhe custasse o mundo, sorria. Pois que essa sabedoria nos assista também, para os tempos que se avizinham."

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